
Quadrinhos devem vir com polêmica
De vez em sempre vemos alguma notícia de polêmica envolvendo personagens e tramas vindas dos quadrinhos. Seja polêmicas nos próprios gibis, suas adaptações áudio visuais ou opiniões polêmicas vindas da comunidade, seja fãs, atores, autores, ilustradores ou empresários do ramo. Normalmente isto vem na forma de polêmica por causa da mudança de gênero, raça, orientação sexual ou até mesmo transtorno psicológico em determinado personagem. Uma polêmica recente, mas fora do eixo rotineiro de polêmica relacionada a gênero, raça ou orientação sexual foi o Batman suicida de Tom King.
A polêmica é parte da história dos quadrinhos
Na era do patriotismo fervoroso entre guerras, tivemos as duas criações que hoje representam as duas maiores editoras e o patriotismo da nação onde realmente floresceu o mercado e a cultura dos quadrinhos. Capitão América e Superman. As duas criações tiveram raízes diferentes para representar o mesmo patriotismo que ainda hoje é poderoso nos EUA.
Simon e Kirby buscaram essa raiz no Brooklyn, uma das comunidades mais diversas e culturalmente ricas de Nova Iorque, mas essencialmente americana. Siegel e Shuster foram por outro caminho e apostaram nos valores e na cultura do interior do Kansas, valores fortes o bastante para transformar um alienígena em um símbolo maior dos valores patrióticos da época do que o garoto do Brooklyn.
A polêmica da imigração
Olhando pelas óticas das polêmicas atuais o garoto nascido no Brooklyn foi superado como símbolo patriótico por um imigrante ilegal – Jor El não teve tempo de solicitar um visto de refúgio humanitário ao governo dos EUA – e ainda alguém que nem humano é. O poder do símbolo representado pelo Superman trás uma história mais profunda sobre todos os desafios dos imigrantes que fugiram de sua terra natal em colapso em busca de uma terra de oportunidades, justiça e liberdade.
Assim como Jor El, meus bisavós também acreditaram na América – no meu caso a América do Sul – como uma terra de oportunidade para seu filho. E esta terra de oportunidade foi uma que impôs desafios e injustiças. Mesmo antes da segunda guerra mundial e do conflito declarado entre Japão e EUA os imigrantes asiáticos sofriam perseguições de grupos corporativistas estabelecidos na costa oeste.
Mesmo assim as comunidades de imigrantes asiáticos, quando mantiveram suas tradições culturais em respeito a liberdade de comércio e expressão em seu novo lar, foram um dos pilares para a construção do ideal de América futuramente representado pelo Superman. Estes também não foram imigrantes que abriram mão de suas culturas nativas, numa visita à uma loja de família de imigrantes chineses procure e irá achar uma estátua ou um símbolo do Deus Guan Yu, uma divindade chinesa ligada a honra também no comércio.
Isto é futuramente representado pelo Superman quando este não abandona sua língua nativa, em décadas posteriores o kryptoniano é aprofundado; ou sua religião, quando Rao é consolidado como a divindade suprema de Krypton.
Apenas décadas depois de sua criação tivermos um Superman asiático ou preto, mas desde o começo tivemos um Superman que representava os desafios e dilemas comuns entre as diversas nacionalidades de imigrantes na América.

As feridas polêmicas ao longo da história
Do outro lado, uma das maiores obras primas da Marvel são os X-Men. O que originalmente era uma metáfora para descrever os conflitos raciais da metade do século XX, tendo Xavier representando os ideais Pr. Martin Luther King Jr. e Magneto representando os ideais de Malcolm X se expandiu em algo muito maior.
Ao abrir polêmica por questionar se Noturno deveria ser considerado humano por ser azul na tentativa de conscientizar sobre o problema do racismo, X-Men se tornou um refúgio filosófico para diversas comunidades dentro da sociedade que se sentiam excluídas por serem diferentes, especialmente a comunidade LGBTQIA+.

Apesar do preconceito sofrido e das diversas diferenças físicas, Noturno é um cristão fervoroso, esperançoso e carismático, talvez até mais que os reacionários que diminuem o valor de sua existência pelas diferenças de aparência.
Desde então as páginas de X-Men são recheadas com reflexões filosóficas profundas, muitas vezes sem um certo e errado definido. Mantendo o padrão de sempre trazerem reflexões necessárias para o leitor compreender melhor a sua própria individualidade ou a de um semelhante. Um recente exemplo disto foi o debate filosófico entre Alex Summers, o Destrutor, e Kitty Pryde, a Lince Negra, onde ambos discordavam sobre o “orgulho em ser mutante”.

Alex sentia na palavra “mutante” uma barreira que o separava de outras pessoas, um ponto de vista também visto em grupos raciais e pessoas LGBTQIA+ que não veem de forma positiva para sua identidade se identificarem com orgulho por algo com o qual nasceram, a cor da sua pele, gênero ou sua orientação sexual.
Kitty Pryde, por outro lado, sendo também judia, via em dizer ser “mutante e judia com orgulho” uma forma de resguardar e fortalecer sua auto estima e sua força psicológica diante do preconceito e do sofrimento de ser excluída ou maltratada por algo não apenas normal, mas também que nasceu com ela.

A verdade é que nem eu nem você está em posição de dizer que Kitty está errada ou que Alex está errado. Ambos representam pessoas reais que usam estes pilares filosóficos para viverem suas vidas, desde que façam isto de forma genuinamente pacífica e sem tentar impor a ninguém, qual a invalidade desta opinião?
A verdade inegável é que X-Men só existe como o ícone cultural que é por trazer esta polêmica e diversas outras. Novas surgirão no futuro e enquanto X-Men respeitar suas raízes darão voz a polêmica.
A polêmica do Império e da Guerra
Um ponto comum entre as duas maiores editoras é como também não têm pudores em trazer verdades duras sobre o poder, o estado e a corrupção existente nas instituições mais poderosas do globo. Watchmen, Guerra Civil e Esquadrão Suicida são alguns dos melhores exemplos sobre a corrupção do poder.
Watchmen, assim como o Justiceiro, trás a ferida da guerra do Vietnã, mas além da memória dolorosa da derrota dos americanos e da crueldade absurda empregada no conflito há também a abordagem dos traumas deixados em quem guerreou. Justiceiro e Comediante representam o resultado de pegar pessoas normais, com problemas normais, e lhes dar o poder de um soldado e os traumas da guerra. Esta ferida dolorosa é a realidade de diversas pessoas em diversos cantos do mundo, mentes traumatizadas por conflitos muitas vezes sem sentido, resultado da corrupção do poder.
Guerra Civil – apenas nos quadrinhos, no sentido de apresentar a corrupção do poder no estado a adaptação cinematográfica foi uma vergonha – trás o risco de se deixar o estado, seus burocratas e políticos guiados por interesses eleitorais e respostas superficiais, definirem quem está certo e quem está errado. Decidiriam quem são os heróis e por consequência também decidiriam quem são os vilões, quanto tempo até que isto se tornasse arma política e eleitoreira?
A polêmica que você não vê
Por último e também o mais importante, Esquadrão Suicida – ou tudo aquilo que o estado faz de violação de direitos humanos e abuso de autoridade sem que saibamos. Tanto nos quadrinhos, animações e até nos filmes de Ayer e Gunn o Esquadrão Suicida trás a realidade da corrupção do poder e todos os abusos feitos em sigilo sem que o público ou a imprensa saibam. No filme de Ayer o governo fabrica o vilão ao tentar transformar um poder desconhecido e sobrenatural em arma. No filme de Gunn a crítica é mais pé no chão e faz referência até a participação dos EUA nas duas ditaduras cubanas. Nas animações e quadrinhos não é diferente, violação de direitos humanos e abuso de poder são a base da existência de Esquadrão Suicida.

Viola Davis entrega a Amanda Waller perfeita em ambos os filmes, mas a essência de Esquadrão Suicida é impecavelmente descrita no filme de Ayer, quando ela executa toda a sua equipe técnica para manter o sigilo das operações da Força Tarefa X e como seus erros condenaram uma cidade inteira a morte nas mãos de uma bruxa.
Esta é uma verdade extremamente polêmica sobre os estados, em especial o estado americano e seu hábito anti-ético de tentar policiar o mundo inteiro.
Quadrinhos não seriam quadrinhos sem trazer polêmicas fortes, sua diferença é como trazem elementos de teatralidade e ficção para facilitar o entendimento de questões extremamente complicadas. Esta realidade vai desde os mais simples gibis de Maurício de Sousa até a ambiciosa HQ Província Negra, que busca recuperar a memória do brilhante advogado abolicionista Luiz Gama.
Não é HQ sem uma dose bem escrita de polêmica.
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"O poeta é assim: tem, para a dor e o tédio, Um refúgio tranquilo, um suave remédio. És tu, casta poesia, ó terra pura e santa! Quando a alma padece, a lira exorta e canta; E a musa que, sorrindo, os seus bálsamos verte, Cada lágrima nossa em pérola converte." MACHADO DE ASSIS
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