
Como a Lei de terras de 1850 prolongou a escravidão
A escravidão é uma das partes mais vergonhosas da história brasileira. Apesar de nossa abolição não ter vindo acompanhada de uma guerra sangrenta, como foi em outros países a exemplo dos EUA, deixou marcas e legados igualmente cruéis, em especial nos termos da liberdade dada pela Lei Áurea. A Lei Áurea não permitiu acesso pleno a propriedade privada por parte dos ex-escravizados, removendo-os de diversos aspectos essenciais para sua inserção na sociedade.
Se um eremita vive sozinho e sem lei o restringindo, fazendo para si todo o vestuário, alimentação e proteção contra o clima, feras e doenças, em algumas destas funções ele será excelente e em outras será terrível. Via de regra, cidades surgem disto, quando há a necessidade social, institucional ou cultural de colonizar uma região ou quando há um determinado recurso natural a ser explorado por interesses econômicos.
Locais de temperaturas extremamente baixas podem ter peixes especiais para culinária e locais próximos a vulcões têm solos ricos. Recursos existem em todo canto do planeta, depende da habilidade de os aproveitar. Apesar disto, recursos naturais ou as habilidades de quem trabalha não são o fator principal para o desenvolvimento de pessoas ou sociedades, o essencial é a legitimidade da posse e como ela é obtida.
Quando acontece a primeira apropriação, a tomada de posse legítima de um recurso natural — ou pedaço de terra — não reclamado por ninguém, a legitimação dessa apropriação surge com o trabalho — plantação, extração de minerais, criação de gado, etc — naquela terra, eventualmente as comunidades surgem para prestar serviços a estes colonos. Nesse sentido, o reconhecimento em lei viria para dar legitimidade para esta posse — reconhecendo para fins bancários e de herança a posse daquela propriedade.
Quando a posse está legitimada, a primeira geração trabalha a terra, vindo a partir da segunda geração — através dos recursos e capital acumulados pelo trabalho da 1ª geração na terra — uma maior qualificação intelectual e aumento da produtividade e riqueza.
Essa teoria se provou realidade no Brasil com os colonos imigrantes europeus, mesmo aqueles que chegaram tardiamente, como os italianos e alemães. Atualmente os descendentes destes possuem posições econômicas, sociais e culturais relevantes na mistura cultural brasileira, algo não aproveitado pelos afro-brasileiros, tanto por razões extra-oficiais, como pelos efeitos legais da Lei 601/1850, a Lei de Terras.
Como isto influenciou a questão racial?
Primeiro precisamos abordar a diferença de tratamento entre europeus e brasileiros. Ainda no começo do século XIX, essa diferença foi um dos causadores da revolução separatista pernambucana de 1817 — devido a como os europeus eram tratados como uma casta privilegiada na sociedade brasileira da época.
Isto somado às leis inúteis, como a lei do ventre livre — libertar bebês que precisam da atenção e cuidado das mães ainda escravizadas — ou dos sexagenários — libertar escravizados acima dos 65 quando poucas pessoas nesta situação chegavam a esta idade — consolidou no novo Império instituições que atrasavam o fim da escravidão.
No começo do Império, tanto Bonifácio quanto Feijó tentaram dar respaldo legal aos libertos para que se tornassem colonos, mas ambas as tentativas falharam. Com a Lei 601 de 1850 se iniciou o processo de segregação — legal e extra oficial — que culminou na segregação racial com consequências até o presente.
Já no primeiro artigo, a Lei de terras proibia qualquer método de aquisição de terras que não através da compra. No terceiro artigo, a lei abrange o termo a qual legisla “terras devolutas”, abrangendo quase todas as terras do então Império. No quinto artigo, a lei abre precedente para a legitimação da primeira posse de terras para habitação, plantio ou criação de animais.
Neste caso, se havia previsão legal para a primeira ocupação, por que os ex-escravizados não tomaram primeira posse de terras para sua subsistência ao invés de se aglomerarem nos cortiços e periferias das cidades?
As muitas falhas institucionais
Em 1822, José Bonifácio tentou aprovar uma lei que devolvia ao Império — dessa forma restabelecendo a possibilidade de primeira posse — todas as sesmarias ainda não cultivadas ou aplicadas no previsto pela lei. Bonifácio falhou em derrotar os interesses dos latifundiários escravocratas.
Em 1829, o Regente Feijó assumiu a mesma luta, tentando recuperar dos grandes latifundiários escravocratas os grandes pedaços de terra entregues — ou adquiridos por primeira posse — a eles. Mas devido a diversas rebeliões, o projeto não recebeu a devida atenção.
A Lei 601 em 1850, quando aprovada, significou vitórias importantes para estes mesmos latifundiários. Impostos que puniam concentrações de terras abandonadas e limites para registros de novas terras foram enfraquecidos ou extintos. As fazendas que já eram extremamente grandes passaram a ficar ainda maiores.
A letra da lei já era frouxa, mas os anos que se seguiram da aprovação da Lei 601/1850 até a Lei Áurea foram de falhas na aplicação das poucas punições previstas. A terra era ocupada, registrada como propriedade de latifundiário, mas os erros não eram corrigidos, multas não eram aplicadas e ocupações indevidas não eram revogadas.
O limite do absurdo em termos de sesmarias e cessões de terras dadas, mas nunca executadas — um dos maiores problemas que poderiam ter sido resolvidos pela proposta de Bonifácio em 1822 — é o exemplo de Nova Europa-SP. O pedaço de terra onde hoje fica o município foi dado como sesmaria em 1815 ao Coronel Joaquim José Pinto de Moraes Leme, mas o povoamento só começou em 1906.
Quantos outros exemplos, iguais à Nova Europa-SP, não poderiam ter sido povoados por ex-escravizados realizando primeira ocupação para subsistência? Não o foram porque, mesmo que ocupassem e trabalhassem naquela terra, não possuiriam qualquer garantia legal de serem donos daquela terra e daquele trabalho.
Quando a Lei Áurea chegou, a Lei de terras já estava há mais de 30 anos alimentando este sistema corrupto. Terras ao redor das fazendas onde eles eram escravizados já eram, com força de lei, pertencentes aos latifundiários escravocratas e não poderiam ser objeto de primeira ocupação. Os ex-escravizados foram libertados sem qualquer recurso, uma viagem longa para terras distantes ainda não ocupadas exigiria comida e água que eles não tinham.
A única alternativa restante foram os cortiços e favelas, impedindo que os ex-escravizados usassem sua experiência com lavoura na agricultura para seu sustento próprio. O governo republicano instalado posteriormente — com amplo apoio dos latifundiários escravocratas — só não usou dinheiro de imposto para “ressarcir” os ex-donos de escravos porque Ruy Barbosa queimou os registros.
Sem os registros de quem era “dono” de quem, foi impossível a realização de “ressarcimentos” pela libertação dos escravizados. Infelizmente esse não foi o fim das tentativas dos poderosos de manter subjugados o povo que havia sido escravizado.
A presença de colonos vai muito além de aspectos sociológicos ou econômicos. A cultura é moldada por isto, daí vem a presença forte de festas culturais como a da polenta, do vinho ou a Oktoberfest. Através da colonização feita por imigrantes pomeranos foi criada no Espírito Santo uma comunidade onde é preservada uma herança cultural já inexistente em seu berço original. Quem planta e com a colheita alimenta uma nação também influencia a sua cultura. Toda a experiência agrícola e cultura dos povos afro-brasileiros foram negadas a participação na estruturação da maioria de nossas cidades.
Publicado originalmente por Insurgere em Novembro de 2020.
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"O poeta é assim: tem, para a dor e o tédio, Um refúgio tranquilo, um suave remédio. És tu, casta poesia, ó terra pura e santa! Quando a alma padece, a lira exorta e canta; E a musa que, sorrindo, os seus bálsamos verte, Cada lágrima nossa em pérola converte." MACHADO DE ASSIS
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